Contrabando de cigarros: Um crime cada vez mais organizado
22/07/2015
Foz do Iguaçu - O movimento de carros e ônibus era intenso por volta das 17h da nublada quinta-feira, 9 de julho, na Ponte Internacional da Amizade, que separa Foz do Iguaçu (PR) de Ciudad del Este, no Paraguai. Apesar do clima instável durante toda a semana, e embora a alta do dólar tenha derrubado o volume de brasileiros que rumam ao Paraguai para fazer compras, o fato de ser época de férias, véspera de feriado em São Paulo e faltando apenas dois dias para a visita do Papa Francisco ao país, fazia da fronteira um verdadeiro formigueiro. Dali, porém, poucos pareciam perceber uma cena que podia ser vista a olho nu e se desdobrava no Rio Paraná: em plena luz do dia, cargas de mercadorias atravessavam o rio em uma pequena embarcação e eram tranquilamente descarregadas em território brasileiro. Era a indústria do contrabando em ação.
A imagem que espantava os desavisados faz parte da rotina daquela região, principal porta para a entrada de produtos irregulares no Brasil. Historicamente encarado como um desvio inofensivo, o contrabando de cigarros tem tomado proporções bem maiores nos últimos anos. A convivência pacífica da população com a comercialização discreta de marcas paraguaias escondidas atrás dos balcões de comércios de bairro ignorou um fenômeno que hoje aflige não apenas o mercado regular, altamente prejudicado pela concorrência desleal com os "made in PY", mas também os órgãos de repressão, desafiados a lidar com grupos cada vez mais profissionalizados, ágeis e violentos.
Por muito tempo, o mercado ilegal se manteve a partir de um esquema quase artesanal: o cigarro cruzava o País em pequenas quantidades dentro de ônibus de excursões de comerciantes que iam ao Paraguai para abastecer seus estoques. Esse enredo romântico, porém, não dá mais conta da realidade, que hoje possui todos os elementos de crime organizado
Nessa nova lógica do contrabando, os muambeiros deram lugar às quadrilhas, que operam armadas, em grande escala e com uma logística de fazer inveja a qualquer indústria. Para chegar ao consumidor sem cair nas teias do controle público, o cigarro conta com uma rede gigantesca de carregadores, transportadores, olheiros, batedores e financiadores ocultos - além de possíveis servidores públicos cooptados e negócios de fachada para lavagem de dinheiro. "A rede deles é tão bem organizada que às vezes, quando chegamos na delegacia com um contrabandista preso, o advogado já está lá esperando, sem ele nem ter feito o telefonema a que tem direito", comenta a auditora fiscal Giovana Longo. Outra característica marcante é a setorização do serviço. "Tem quadrilha especializada em transporte de cigarro por estradas vicinais, outra especializada em aliciar caminhoneiros nos postos de gasolina para que misturem contrabando no meio de sua carga lícita e por aí vai", relata Paulo Kawashita, supervisor de equipe de repressão aduaneira da Receita Federal de Foz do Iguaçu.
Isso tudo permite que a roda da ilicitude gire com uma velocidade que foge ao controle do Estado. Um carro que é roubado em São Paulo em 24 horas já está em Foz, preparado e carregado de caixas de cigarros para ser transportado. Ao mesmo tempo, torna a repressão uma tarefa de periculosidade muito maior. "Existem motoristas dentro desses carros carregados que recebem treinamento de direção ofensiva", acrescenta Kawashita.
Estatísticas refletem o novo cenário. O cigarro representa hoje quase 70% dos produtos contrabandeados para o Brasil e marcas paraguaias estão entre as mais consumidas pelos brasileiros. O volume de apreensões no ano passado foi mais de oito vezes superior ao de 2004. Somente no primeiro semestre de 2015, mais de 16 milhões de maços foram retirados de circulação. Ainda assim, trata-se de uma pequena fatia do real fluxo do mercado negro - estima-se que não mais de 10% caem nas mãos da repressão. "Recentemente encontrei cigarro paraguaio no Morro de São Paulo, uma ilha na Bahia. Como isso chega até lá? Só graças a esse grande aparato", analisa o presidente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf), Luciano Stremel Barros. Para o delegado da Polícia Federal de Foz do Iguaçu, Fabiano Bordignon, não é exagero afirmar que o contrabando de cigarros é hoje tão nocivo à sociedade quanto o tráfico de drogas. "Os contrabandistas não são amadores", completa.
A EVOLUÇÃO US$ 7,3 milhões foram apreendidos em cigarros contrabandeados no ano de 2004 pela Receita Federal de Foz do Iguaçu US$ 64,9 milhões foram apreendidos em 2014
O RANKING DO CONTRABANDO Cigarros 67,44% Eletrônicos 15,42% Informática 5,04% Vestuário 3,03% Perfumes 2,45% Relógios 2,03% Brinquedos 1,89% Óculos 1,50% Medicamentos 0,85% Bebidas 0,35% *Fonte: Idesf
Lucratividade atrai o tráfico
Uma das possíveis explicações para essa sofisticação do contrabando de cigarros é a sua associação ao tráfico de drogas, já observada em muitas regiões fronteiriças do País nos últimos anos. Segundo o delegado da Polícia Federal de Uruguaiana (RS), André Luiz Martins Epifânio, é cada vez mais comum traficantes diversificarem suas atividades ilícitas, passando a atuar também no mercado de cigarros paraguaios, levando junto toda a sua expertise baseada no emprego de violência.
Dentre as evidências disto, está o envolvimento nesta cadeia de pessoas com várias passagens policiais que antes eram recrutadas para o tráfico. "O cigarreiro não é reprimido porque as pessoas não têm ideia desse envolvimento duplo. O contrabando de cigarro ficou muito perigoso para a sociedade, que não prestou atenção nisso", resume o delegado.
Dentre os motivos que levam os traficantes a expandirem sua atuação para o contrabando está a elevada margem de rentabilidade do comércio ilegal de cigarros. Segundo o estudo "O Custo do Contrabando", elaborado pelo Idesf, o baixo custo do produto paraguaio garante às quadrilhas ganhos líquidos que podem ser superiores a 200% - ainda que o lucro seja obtido a partir de um volume grande de vendas. Outro atrativo está no fato de as penas previstas na legislação para o contrabando (de dois a cinco anos de prisão, segundo uma lei sancionada no ano passado) serem bem mais leves que as do tráfico. "No cigarro, o criminoso se expõe menos em termos de imputação penal", observa.
Separada da Argentina pelo Rio Uruguai, Uruguaiana é um dos centros de distribuição de contrabando para o território gaúcho. Embora o trecho até Paso de los Libres possa ser facilmente vencido através do 1,4 quilômetro da Ponte Internacional Getúlio Vargas, o aperto na fiscalização em solo, sobretudo após a Copa do Mundo de 2014, faz com que hoje a maior parte do fluxo ilegal se dê por via fluvial - o que não é diferente da realidade de Foz do Iguaçu. Para isso, as quadrilhas contam com o apoio de comunidades ribeirinhas no lado brasileiro, que são pagas para oferecerem suas residências - em boa parte em situação de clandestinidade - para recebimento e armazenamento das cargas tão logo as embarcações atracam, o que acontece principalmente à noite e nas madrugadas.
Conforme Epifânio, a logística cria grandes dificuldades para a repressão. Apesar do esquema já ser conhecido, as polícias não podem ingressar nas casas sem mandados de busca e apreensão. Outro problema é a falta de estrutura, o que impede que os flagrantes sejam feitos no rio. Para o delegado, o cenário de retração econômica no País favorece a adesão dos ribeirinhos. "Muitos aceitam porque estão desempregados e com dificuldades financeiras", conclui.
(Fonte: O Informativo do Vale, 18 de julho de 2015)
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