Sem reforma tributária, concentração de renda vai continuar no Brasil - Rede Brasil Atual
30/09/2014
País onera consumo e trabalho, deixa de fora parte importante da
renda dos mais ricos, cobra valores irrisórios sobre patrimônio e ignora
imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição Reclamada
de pontos de vista diferentes por representantes do capital e do
trabalho no Brasil, a reforma tributária ganha ares de urgência em
vésperas de eleição. Porém, apesar de a necessidade de realizar mudanças
profundas no sistema ser praticamente consensual entre membros dos
setores produtivos, o debate é repleto de distorções e meias verdades –
quando não inverdades. Dizer que a carga tributária brasileira é alta ou
que é preciso simplificar o sistema são argumentos frequentemente
usados por empresários e rentistas, mas a estrutura é hoje o maior
entrave a uma verdadeira distribuição de renda no país. No Brasil, quem
tem mais, paga menos.
Segundo estudo da organização não governamental Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc) divulgado recentemente, a partir de dados de
2011, um dos maiores símbolos da distorção se reflete na estimativa da
participação no bolo: 55,74% da arrecadação tributária de União,
Distrito Federal, estados e municípios provém de impostos sobre consumo,
e 30,48% da tributação da renda, dos quais 15,64% vém da renda do
trabalho. Enquanto isso, a tributação sobre patrimônio representa, de
acordo com o estudo, apenas 3,7%.
Contudo as reclamações de empresários e industriais, segundo os quais o
sistema tributário, além de complexo, onera demais a produção e precisa
ser simplificado, também não são desconsideradas por especialistas. “São
muitos tributos e a legislação é, de fato, meio pesada. Existem
problemas de competitividade. As empresas gastam muito tempo com a
administração tributária. Não quero diminuir a importância da
simplificação”, aponta Cláudio Hamilton Matos dos Santos, da Diretoria
de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea).
Seja como for, se a desigualdade diminuiu no Brasil, não foi graças a
avanços no sistema tributário. Na primeira década do século 21, o país
caminhou no sentido da desconcentração de renda. Segundo a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2001 a 2011 houve
crescimento real da renda dos 10% mais pobres, que saltou 91,2%,
enquanto no segmento dos 10% mais ricos a expansão foi de 16,6%. O
índice de Gini (que mede a desigualdade), incluindo o país inteiro,
ficou em 0,501 em 2013. Em 2001 era de 0,594. O indicador, que vai de 0 a
1, mostra melhor situação quanto mais próximo de zero. Os países da
União Europeia têm índices que variam de 0,25 a 0,36.
“É uma redução muito rápida na última década, mas o coeficiente ainda é
muito grande e a queda aconteceu a despeito da carga tributária
regressiva, que não contribuiu para isso”, anota Cláudio Hamilton. No
período, de acordo com a avaliação do técnico do Ipea, a desigualdade
caiu, apesar da carga regressiva, porque o gasto público fez o papel de
incentivador das políticas sociais do governo, que passam pelos
programas de transferência de renda, como Bolsa Família, aumento do
salário mínimo e outras.
Mesmo com a redução dos índices de desigualdade, dados do Banco Mundial
de 2012 indicam que 40% da população mais pobre ficava com 11% da
riqueza e o Brasil ainda é o 13° país em concentração de renda no mundo.
A carga tributária de 1995 a 2011 subiu de 27% a 35% e o sistema
regressivo onera as classes mais baixas, cidadãos comuns, consumidores e
trabalhadores. Inúmeros especialistas concordam que reforma tributária
quase sempre significa redistribuição de renda. Porém, no Brasil, as
mudanças na legislação, quando ocorrem, costumam concentrar a renda
ainda mais.
“Reforma tributária neutra, imparcial, não existe. Qualquer reforma vai
ter ganhadores e perdedores. Para se fazer uma reforma, é preciso
enfrentar uma primeira questão: quem vai botar a mão no bolso?”,
questiona o economista Evilásio Salvador, doutor em política social pela
Universidade de Brasília (UnB) e professor na mesma instituição.
“Trata-se de um conflito de classe: você vai desonerar os trabalhadores,
os consumidores em geral que estão hoje arcando com a maior parte dos
tributos em relação a sua renda, e, portanto, onerar quem tem maior
renda e patrimônio? Essa é uma questão essencial a ser respondida.”
Para Salvador, a segunda questão é que uma reforma tributária pressupõe
mexer no federalismo fiscal. O maior imposto do país é o ICMS, que,
incidente sobre o consumo, é estadual, e não federal. Ele é responsável,
sozinho, por 20,32% de toda a arrecadação tributária do país e 7,18% do
PIB.
O ICMS é considerado “essencialmente regressivo” por tributaristas e
economistas que defendem que o sistema seja composto por tributos
progressivos, aqueles que seguem a regra de "quem tem mais, paga mais".
Era o caso do IPTU proposto pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad,
em 2013, derrubado pelo Judiciário, que aumentava o imposto nos
distritos mais ricos da cidade e o reduzia nos mais pobres.
Por incidir sobre uma quantidade enorme de produtos e serviços, o ICMS é
o contrário. Encarece alimentação, bebidas, serviços de bares e
restaurantes, prestações de serviços de transporte interestadual e
intermunicipal. Todos, ricos e pobres, pagam a mesma alíquota sobre o
que consomem. Para se ter uma ideia, o ICMS, com "alíquota-padrão" de
17% ou 18%, é responsável por 45% dos tributos que incidem sobre os
alimentos, segundo o Inesc.
Além de ser regressivo, o ICMS (regulado pela Lei Complementar nº
87/1996, a obsoleta Lei Kandir) é o responsável pela chamada “guerra
fiscal” entre os estados e um caos legislativo, já que cada unidade da
federação tem a própria lei. Os governos usam o imposto como instrumento
para atrair empresas e investimentos, por meio de benefícios fiscais –
redução de alíquotas.
A Cofins, uma contribuição social essencial ao financiamento da
seguridade social, é outro tributo que onera fortemente o consumo,
representando 10,81% da arrecadação tributária total e 3,82% do PIB.
Cofins e ICMS, juntos, respondem por uma arrecadação equivalente a 11%
do PIB brasileiro.
Ao contrário do que se apregoa, mudanças importantes podem ser
implementadas sem necessariamente mexer na Constituição. Isso porque boa
parte da legislação que rege o sistema tributário brasileiro é formada
por leis ordinárias. De 20 anos para cá, houve mudanças significativas,
via leis federais, que tornaram o sistema ainda mais injusto,
concentrador e regressivo do que já era. “O ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso editou umas 15 modificações na legislação, Lula umas
cinco ou seis e Dilma Rousseff mais três ou quatro”, lembra Salvador.
Por esse motivo, ele acredita que, embora não tenha havido uma reforma
tributária no “sentido clássico (por meio de emendas constitucionais),
na prática já se fez uma reforma, ou contrarreforma tributária, em
mudanças infraconstitucionais”.
No primeiro ano de governo, o tucano Fernando Henrique desonerou
contribuintes abastados ao editar a Lei 9.249/1995, que prevê a isenção
de Imposto de Renda à distribuição de lucros e dividendos a pessoas
físicas. “É um emblema de que nós somos mais liberais do que os
neoliberais. A título de exemplo, um sócio do Bradesco ou o Itaú, pagam
zero, absolutamente nada de Imposto de Renda sobre os dividendos,
enquanto o trabalhador, no caso o bancário, está pagando na fonte”, diz
Salvador.
Outra herança de FHC é a isenção de IR na remessa de lucros e dividendos
das empresas estrangeiras ao exterior. Segundo Nota Técnica do
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(Dieese), as remessas somaram US$ 171,3 bilhões nos últimos oito anos e
atingiram US$ 23,8 bilhões em 2013.
Patrimônio
Os impostos sobre o patrimônio e grandes fortunas também são simbólicos
de um sistema concentrador de renda. O imposto sobre grandes fortunas
está previsto no artigo 153, inciso VII, da Constituição de 1988, mas
ele não foi regulamentado até hoje, 26 anos após a promulgação da "Carta
Magna."
Os tributos que incidem no patrimônio, que somam irrisórios 3,70% da
arrecadação ou 1,31% do PIB, são Imposto Territorial Rural (ITR),
Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou
Direitos (ITCD), Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e os
conhecidos IPVA e IPTU. Nos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) esse tipo de imposto representa cerca
de 3% a 3,5% do PIB.
O caso do IPVA, o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores, não
é menos significativo. Qualquer cidadão que tenha um carro popular paga
este tributo anualmente, mas os proprietários de helicópteros, lanchas,
iates particulares e até jatinhos são isentos. A questão do aumento da
abrangência do IPVA, que depende de mudança constitucional, pode ter um
caráter mais simbólico do que do ponto de vista da arrecadação. "Seria
mais pelo princípio da igualdade e equidade, embora não se vá conseguir
muito dinheiro tributando helicóptero. Mas a preocupação é legítima",
acredita o economista do Ipea.
Mesmo não incidindo sobre veículos diferenciados como esses, o IPVA
ainda arrecada mais do que o IPTU. “Em nenhuma República de bananas a
arrecadação sobre imóvel é menor do que sobre carros, como no Brasil”,
diz o professor da UnB. “Nos países principais, Estados Unidos, França,
Alemanha, Coreia, Japão, a tributação do patrimônio é 10%, 12% da
arrecadação. Todos têm arrecadação importante sobre essa base.”
Para a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o país precisa inverter a
lógica do sistema tributário se quiser realmente ser justo. “Achamos que
as políticas públicas de Estado para educação, saúde, transporte e
moradia têm que ser financiadas pela tributação da renda e do patrimônio
e das grandes fortunas, inclusive para incentivar o crescimento
sustentado do Brasil com as políticas públicas. Não temos conseguido
essa inversão, pela maioria conservadora no Congresso Nacional e até na
sociedade”, diz Vagner Freitas, presidente da entidade.
A CUT defende, entre outras medidas, a atualização da tabela do Imposto
de Renda, com mais faixas de incidência e menos tributação na renda e
salário dos trabalhadores; isenção de tributação sobre a participação de
lucros e resultados; regulamentação do imposto sobre grandes fortunas;
ampliação da incidência do IPVA para lancha, helicóptero, jet ski e
jatinhos. “Os impostos sobre a fortuna e a renda dos empresários têm que
subsidiar políticas públicas em educação, saúde, transporte e moradia”,
afirma Freitas.
“A arrecadação de tributos sobre patrimônio e as alíquotas são bastante
menores do que nos Estados Unidos. Um bilionário naquele país pode pagar
até 40% do espólio ao Estado. Tributa-se muito as doações e as
heranças. No Brasil, a alíquota varia de estado a estado, mas a média é
4%”, diz Santos, do Ipea.
Imposto de Renda
A desigualdade do sistema tributário brasileiro também é clara quando se
trata do Imposto de Renda. Além das desonerações determinadas pela Lei
9249/1995, levantamento feito pela PricewaterhouseCoopers (PWC) sob
encomenda da BBC Brasil, divulgado em março deste ano, revelou que o
imposto sobre a renda da classe média alta e dos ricos no Brasil é menor
do que em quase todos os países do G20, o grupo das nações mais ricas
do mundo.
Aqui, os que têm renda mensal de 250 mil e 150 mil libras (renda média
de R$ 50 mil e R$ 83 mil por mês) são onerados em 26,7% e 26,1% a título
de imposto sobre a renda, respectivamente, diz o estudo. Na média do
G20, esses contribuintes desembolsam 35% e 32,5%. Na Itália, esse tipo
de contribuinte deixa com o fisco nada menos do que 49,4% e 48,6%. De
acordo com o estudo, melhor do que o Brasil em termos de imposto de
renda, para os abastados, apenas Rússia e Arábia Saudita.
O Imposto de Renda é um tributo progressivo, ou pelo menos tem
características que podem ser usadas em favor da progressividade. No
entanto, o popular IR, que já teve 13 faixas até 1985, hoje tem apenas
cinco: isenção para quem teve rendimentos tributáveis até R$ 1.710,78
mensais e quatro alíquotas: 7,5%, 15%, 22,5%, e 27,5%, esta última
denominada alíquota marginal, que incide em rendimentos a partir de R$
4.271,59.
Países europeus e Estados Unidos trabalham com regimes que estabelecem
tributação conforme aumenta a renda e os mais ricos desembolsam até
56,6%, como na Suécia, ou cerca de metade dos rendimentos, casos da
Bélgica, Reino Unido, Áustria, Holanda e outros. “O IR talvez seja o
grande exemplo de imposto progressivo. mas, no Brasil, simultaneamente,
uma parcela grande da população é isenta, há poucas faixas de incidência
e a alíquota marginal é baixa”, diz Cláudio Hamilton, do Ipea.
Segundo a pesquisa do Inesc divulgada em setembro, de 23,5 milhões de
declarações de ajuste de imposto de renda do exercício de 2007, apenas
5.292 contribuintes apresentaram rendimentos tributáveis acima de R$ 1
milhão. No entanto, o número de milionários não para de crescer no país.
De acordo com pesquisa do The Boston Consulting Group (BCG), o Brasil
tinha, em 2008, 220 mil milionários, 15,7% a mais do que no ano
anterior. “A fortuna desses milionários está estimada em,
aproximadamente, US$ 1,2 trilhão, o que equivale a praticamente metade
do PIB brasileiro. Para o BCG, milionários são aqueles que têm mais de
US$ 1 milhão aplicado no mercado financeiro.”
Às vésperas das eleições de 2014, os principais candidatos não
apresentaram a não ser propostas generalizantes para mudar o sistema
tributário. No Congresso, há dezenas de projetos. “Me parece que,
independentemente de quem ganhar as eleições, uma reforma no caminho
tanto do reequilíbrio federativo, como onerar os mais ricos, mexer em
renda e patrimônio, só vai ser possível num começo de governo e com
apoio da sociedade civil organizada, movimentos sociais e movimento
sindical. Senão, não acredito em reforma tributária nesse caminho”, diz
Evilásio Salvador.
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