Presidencialismo de coalizão favorece a corrupção, diz Carrion
Entrevista Jornal do Comércio 11.07.11
11/07/2011
O constitucionalista Eduardo Carrion é crítico ao modelo do
presidencialismo de coalizão. Ele observa que, para garantir
governabilidade, chefes de Executivo fazem alianças amplas, atraindo
partidos através da troca de espaços políticos. Para o acadêmico, o
sistema é uma das principais causas dos casos de corrupção do País.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio,
Carrion prega que os governos abram diálogo com a socidade e a oposição
para evitar que se tornem reféns de partidos fisiológicos. O acadêmico
ainda analisa o primeiro semestre das gestões de Dilma Rousseff (PT) na
presidência da República e de Tarso Genro (PT) no governo do Estado. Jornal
do Comércio - Dois ministros do ex-presidente Lula (PT) voltaram ao
poder e caíram por conta de denúncias: Alfredo Nascimento (PR), dos
Transportes, e Antonio Palocci (PT), da Casa Civil. Como o senhor avalia
esses episódios do governo Dilma?
Eduardo Carrion - O
governo Dilma não só herda alguns ministros do governo Lula, mas a
estrutura, o sistema político, uma maneira de fazer política, de
acomodação. O que leva aos problemas de hoje.
JC - Como o senhor definiria essa maneira de fazer política?
Carrion -
Um presidencialismo de coalizão, que, muitas vezes, é um eufemismo para
justificar ou legitimar alianças sem princípios, para não dizer
espúrias. Eu me perguntaria: até que ponto o presidencialismo de
coalizão não é um presidencialismo de corrupção? Aí, não se trata
exatamente de uma herança de um governo anterior, mas de uma herança
histórica.
JC - Por quê?
Carrion - Remete ao
nosso passado, formação histórica, a não suficiente distinção entre
dimensão privada e pública, à falta de uma tradição republicana, no
sentido de atenção à coisa pública, de respeito ao interesse coletivo. É
uma herança perversa, reforçada por sucessivos governos, em nome da
necessidade de ter base parlamentar.
JC - De os governos garantirem maioria no Legislativo.
Carrion -
O sistema presidencial apresenta um Executivo fortalecido, ainda mais
no Brasil. Há instrumentos legislativos em mãos de um executivo
presidencial, cuja implementação não depende do aval do Legislativo.
Mas, mesmo que dependesse, isso não justifica alianças sem princípios. O
que ocorre é que, em vez de fomentar e exercitar um diálogo com a
sociedade, prefere-se o pretenso atalho de um diálogo quase que
exclusivo com partidos e alianças políticas, com troca de favores e
barganhas de espaços e recursos. Atalho que se revela danoso para o
País.
JC - Como?
Carrion - O custo da nossa
política é elevadíssimo. Há o que chamo simbolicamente de "taxa de
corrupção", que equivale a algo em torno de 30%, 35% da nossa carga
tributária. Significaria que, se houvesse responsabilização, controle e
fiscalização, teríamos uma redução significativa da carga tributária.
Mas tem havido leniência, ou compromisso até, com a corrupção, de
sucessivos governos para alcançar a tal sustentação parlamentar. Essa é a
realidade do presidencialismo de coalizão.
JC - Mesmo após
denúncias de corrupção, o governo teve cuidados ao afastar integrantes
do PR, já que o partido integra a base e tem 40 deputados federais e
cinco senadores. Haveria um caminho alternativo, que não afetasse a
governabilidade?
Carrion - Seguramente. Muitas vezes,
procura-se o caminho mais fácil, do atalho político, em vez de uma ampla
interlocução, inclusive com os partidos oposicionistas e com a
sociedade. Prefere-se garantir uma base parlamentar, não importa o custo
ou as consequências, o que no fundo revela uma fragilidade e expõe o
governo a sucessivos sobressaltos, que são os escândalos reiterados. E
cabe ao governante agir com presteza.
JC - No caso de denúncias contra quadros do governo?
Carrion -
Veja o caso recente (Nascimento) e o caso anterior (Palocci). Houve
mais prontidão nesse último episódio, mas ainda assim houve lentidão.
Tinha que ter demitido imediatamente o ministro. Havia um
comprometimento de toda a cúpula do ministério. E antes também deveria
ter demitido imediatamente Palocci. Teria havido inclusive um grande
ganho político. Mas exatamente por o governante estar refém desses
partidos, há protelações. Volto a dizer que há alternativas, mas deve
haver perspectiva republicana.
JC - Em relação a sua sugestão
de abrir diálogo com a oposição, como avalia o movimento da presidente
Dilma nos 80 anos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB)?
Esse afago marca uma mudança na interlocução ou foi algo isolado?
Carrion -
Foi um ato de grandeza, reconhecimento merecido ao governo de FHC, que
foi um momento importante de consolidação da democracia. Mas foi um caso
pontual, não me parece que signifique abertura de diálogo.
JC - O senhor acredita em um diálogo entre PT e PSDB?
Carrion -
Quando falo em diálogo com a oposição, está circunscrito o diálogo com a
sociedade. E é até uma forma de forçar a oposição a se sensibilizar com
projetos que atendam à necessidade da população. A oposição fica
obrigada a ter a sensibilidade, pensar em termos de um projeto nacional.
É uma forma de evitar se tornar refém de partidos políticos que reúnem
muitas vezes nos seu interior quadrilhas, agentes da corrupção.
JC - E a prática da corrupção, não é mais ampla que partidos?
Carrion -
Muitas vezes se argumenta que é uma experiência generalizada na
sociedade. Mas há de se diferenciar essa corrupção que podemos chamar de
cultural - que faz parte do dia a dia, a procura de vantagens - da
corrupção organizada e sistemática na atividade política, que implica
menos recursos públicos para políticas sociais. Quem perde são os
desfavorecidos, que precisam ser socorridos pelo Estado. Mas, fora isso,
há outras modalidades de corrupção, como o excesso de cargos em
comissão (CCs). Se levarmos em conta a União, os estados e os
municípios, teremos, por baixo, em torno de 300 mil CCs no Brasil, uma
sobrecarga para o Estado.
JC - De que forma?
Carrion -
Pessoas desqualificadas amigas, parentes, os que foram cabos eleitorais
ou até mesmo agentes da corrupção, são chamadas, desprestigiando
servidores de carreira. É verdade que a existência de CCs se impõe num
certo limite: quando muda o projeto político através do processo
eleitoral, é natural que mudem algumas chefias - cargos de ministros,
secretários, presidentes e diretores de órgãos públicos. O que se
critica é esse excesso de CCs, que não ajudam a fazer funcionar melhor o
Estado. São "apadrinhados". E temos outros mecanismos que caracterizam
corrupção, num sentido mais amplo, como emendas parlamentares
individuais ao orçamento, que atendem a interesses eleitorais imediatos
para sustentar a reprodução da classe política.
JC - Como se pode renovar?
Carrion -
Argumenta-se que os responsáveis são somente os eleitores. Isso é
debitar ao povo as mazelas da nossa vida política. Quando o sistema,
embora formalmente seja de lista aberta, tem regras em que o resultado
em grande parte já está previamente definido. O eleitor tem a liberdade
de voto. Mas os candidatos viáveis, de fato, são aqueles já
parlamentares que se candidatam à reeleição ou um prefeito, secretário
de Estado ou chefe de um órgão público que se candidata... Esses têm
viabilidade. Ou aqueles avalizados pelas cúpulas parlamentares. Então,
há a pouca renovação da nossa elite política. Há uma reprodução. E
funciona como uma classe, segundo interesses próprios, independentemente
da filiação partidária e do projeto ideológico. O resultado é a
deslegitimação aos olhos da sociedade da atividade política.
JC - E a reação a isso?
Carrion -
Em defesa das instituições representativas, democráticas e
republicanas, temos que exercer a crítica. A classe política - há
exceções, não há dúvida - é a grande responsável pela deslegitimação do
nosso sistema representativo. Não é o povo brasileiro. Porque, ao
eleitor, os resultados são impostos - os candidatos viáveis são os que
possuem recursos políticos ou os financiados pelo setor privado. É uma
democracia que deixa a desejar. Então, insisto na defesa das
instituições democráticas: temos que criticar os comportamentos
políticos atuais.
JC - O senhor percebe um aumento do volume dessas críticas na imprensa?
Carrion - Somos
todos os dias sobressaltados por denúncias de corrupção. A política, em
grande parte, se transformou num instrumento de ascensão social e de
enriquecimento através de atos ilícitos. Ora, nesse quadro dificilmente
haverá uma maior afeição do cidadão com relação à classe política.
Então, há de se renovar. É verdade que já avançamos, por força da
demanda social, do trabalho investigativo dos meios de comunicação, de
uma nova cultura adquirida desde o processo constituinte. Nem sempre a
legislação é suficientemente ágil nesse sentido. Mas há instituições que
atuam com eficácia, com visão republicana, como a Polícia Federal, a
Polícia Civil, o Judiciário, a Controladoria-Geral da União, o
Ministério Público...
JC - A crítica reiterada aos políticos
também causa desinteresse na população. E manifestações do tipo "é
preciso fechar o Senado"; "não precisamos de deputados". Isso também não
pode ser prejudicial?
Carrion - Vou dizer uma
obviedade: a política faz parte da condição humana. Quero ressaltar a
importância da política, que, exercida democraticamente, faz parte do
processo civilizatório. Podemos aperfeiçoar os mecanismos democráticos.
Fala-se em democracia participativa, por exemplo, em face dos limites da
democracia representativa. Há a necessidade de efetivarmos mecanismos
de participação que façam com que o cidadão participe mais de perto da
vida política. É este o caminho: reforçarmos a condição política do
homem. Então, estou fazendo a apologia da política democrática. Meu
grande temor é que a democracia está sendo aviltada pela nossa classe
política. Então, para fazer apologia da democracia, tenho que criticar
as mazelas, sob pena de ser leniente ou conivente.
JC - Qual é a sua avaliação do governo Tarso Genro?
Carrion -
Os governos estaduais reproduzem um modelo do governo federal.
Alianças, muitas vezes sem princípios, com troca de benesses e de
cargos. Percebemos isso no Rio Grande do Sul, é só ver o caso recente do
PTB. Percebeu-se nos debates dos bastidores do partido que existem
regras de alocação de espaços políticos, conforme o peso parlamentar ou
os interesses com relação à base de sustentação. Um pouco antes, tinham
vindo à tona manifestações de militantes e dirigentes do PT
insatisfeitos por não ter espaços para estagiários no Banrisul! Então
está se vendo que as práticas são semelhantes.
JC - De novo a questão da governabilidade...
Carrion -
Por outro lado, há de se reconhecer que, levando em conta o governo que
tínhamos (Yeda Crusius, PSDB), sobrecarregado de denúncias de
corrupção, o governo Tarso Genro apresenta novas perspectivas, embora
reproduza o padrão do governo federal.
JC - Mas o governo aprovou todos os projetos na Assembleia. E não houve uma crise ou conflito grave nestes seis meses.
Carrion -
As reformas recentemente feitas, em especial a previdenciária, revelam
um estilo. Veja, essa é uma questão de Estado, e não de governo. Quais
foram os procedimentos? Regime de urgência, pouco diálogo com a oposição
e com as organizações sociais... Não teria sido necessário que houvesse
sensibilidade e abertura? Diálogo com a oposição e a sociedade. Foi uma
oportunidade, em certo sentido, perdida. Chegou-se ao resultado? Sim.
Mas criou insatisfações e ainda deixa em aberto a oportunidade de
contestação judicial no caso da Previdência.
JC - O senhor considera inconstitucional esse projeto?
Carrion -
Há problemas jurídicos. Por exemplo, alíquotas diferentes, que eram a
proposta inicial da reforma. Há uma decisão liminar do Supremo Tribunal
Federal (STF) entendendo que as alíquotas diferenciadas caracterizam
algo inconstitucional. A solução dada foi uma alíquota única, com
compensação para os salários mais baixos. Até que ponto isso é ou não
uma simulação de alíquotas diferenciadas? Então, a questão é complexa.
Seria temerário concluirmos que é inconstitucional. Há de se examinar
com maior atenção.
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