Prestes a completar dois anos, no cargo de
procurador-geral do Ministério Público de Contas (MPC), Geraldo Da
Camino, avalia positivamente o processo de transparência e de
aproximação com a sociedade que o Tribunal de Contas do Estado (TCE) tem
promovido. O procurador-geral apoia a mobilização dos servidores pelo
cumprimento dos requisitos constitucionais para a indicação dos
conselheiros do Tribunal, valorizando a qualificação técnica e coibindo
as distorções provocadas pelas nomeações meramente políticas. “A
Assembleia é o Poder Legislativo, é político por natureza e é assim que
tem que ser. O que não se pode é reproduzir no âmbito do TCE as bancadas
do Parlamento”, sustentou. O procurador-geral lembra que o MPC foi o
primeiro órgão a investigar o Detran, alvo da Operação Rodin, que apurou
o desvio de mais de R$ 44 milhões da autarquia. Reconhece que, desde
então, a atuação do órgão ganhou visibilidade, e aumentaram as
demandas.
Jornal do Comércio – Na semana passada, o
deputado Iradir Pietroski foi aprovado para uma vaga de conselheiro do
TCE. O senhor apoia o movimento dos servidores por indicações de perfil
técnico?
Geraldo Da Camino – A posição do MPC ficou
expressa na última investidura que houve, com o conselheiro Marco
Peixoto. Entendemos na ocasião, assim como as entidades dos servidores,
que o processo de indicação não conseguiu demonstrar o atendimento dos
requisitos constitucionais, que são quais? Notórios conhecimentos
jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração
pública. Além de dez anos de experiência em função ou em atividade em
que esses conhecimentos sejam exigidos, reputação ilibada e o critério
etário. A sabatina efetuada na Assembleia naquela ocasião não conseguiu
sequer aferir os conhecimentos, e esse foi o motivo pelo qual o MPC
encaminhou representação ao TCE propondo que não se desse posse ao
conselheiro nomeado. Essa representação não foi acolhida e a investidura
se deu.
JC - Que iniciativas cabem para modificar esse
processo?
Da Camino - Acho que essa é uma questão que
tem de ser levada, em tese, ao Supremo Tribunal Federal, para que diga
que esse conceito jurídico indeterminado dos notórios conhecimentos tem
que ter uma determinação mínima, uma carga concreta que possa ser
aferida. O TCE julga contas. Então, no mínimo, conhecimento sobre
direito e contabilidade pública acho que não há qualquer dúvida que
tenha que existir.
JC – O problema não é o fato de o sujeito
ser um político.
Da Camino – Não, em absoluto. Não há
qualquer preconceito em relação à classe política. Tenho dito e repito
que há bons e maus políticos, como há bons e maus procuradores,
jornalistas, motoristas de táxi e médicos. A indicação pode recair em um
político ou em um técnico, desde que atenda aos requisitos. Vários
estados já avançaram nessa forma de seleção. A Associação dos Servidores
do TCE e o Centro dos Auditores Públicos elaboraram uma medida de
resolução seguindo o modelo, por exemplo, do Rio de Janeiro, do Paraná e
de Santa Catarina. Quando há uma vaga no conselho do Tribunal é
publicado um edital. Torna-se público e qualquer pessoa que se sinta
capaz pode ser examinada pela Assembleia.
JC – Já há efeito
disso?
Da Camino – Não teve efeito. É verdade que o
projeto de resolução foi encaminhado há não muitos dias e nós não
podemos desconhecer que a tramitação de projetos na Assembleia não é
célere por natureza. Há sempre uma maturação, uma discussão, uma
negociação. Espero que na indicação da próxima vaga, que só deve abrir
no ano que vem, haja espaço para a discussão e que se possa tornar isso o
mais democrático e o mais republicano possível.
JC – Quanto
isso interfere na atuação do TCE?
Da Camino – Não tenho
nenhum caso concreto para dizer que houve interferência. Mas há uma
série de denúncias por todo o Brasil, que foram amplamente divulgadas.
Houve prisão de conselheiros em vários estados. Não quero dizer que
quando a indicação é política esse tipo de problema ocorre. Isso pode
ocorrer com qualquer indicação. Mas, ao menos, temos que ter a garantia
de que o órgão técnico do controle não tenha reproduzido na sua
composição o caráter político do poder que indica. A Assembleia é o
Poder Legislativo, é político por natureza e é assim que tem que ser. O
que não se pode é reproduzir no âmbito do TCE as bancadas do Parlamento.
JC
– Há quem alegue que o TCE é um braço da Assembleia Legislativa.
Da
Camino – Esse é um entendimento absolutamente equivocado. Aliás,
parte da própria doutrina tem esse entendimento, que parte de uma
leitura muito simplista da Constituição. O Tribunal de Contas é um órgão
auxiliar do Poder Legislativo, mas não é subordinado.
JC – A
questão é impedir que as cadeiras do Tribunal sejam objeto de
negociações políticas.
Da Camino – Há vários casos de
indicações que foram questionadas em juízo. Em 2004, foi indicado para o
TCU o então senador Luís Otávio, do Pará, que era réu no Supremo em uma
questão de apropriação indébita num financiamento. Houve uma ação
civil-pública movida pela Ordem dos Advogados do Brasil e pelo
Ministério Público Federal (MPF), e foi feita outra indicação. O então
governador de Minas, Aécio Neves, indicou para conselheiro do TCE a
mulher do vice-governador Clésio Andrade. Se noticiou na época que essa
cadeira era objeto de negociação política em troca da retirada do nome
dele da nominata de vice-governador, para abrir espaço ao Antônio
Anastásia.
JC – Os políticos, devido à ação dos órgãos de
fiscalização, passam a se considerar inimigos?
Da Camino –
Não só os políticos. Para muitos, a melhor defesa é o ataque. A
primeira coisa que tentam é desqualificar o acusador. Enfrentei isso.
JC
– A crença na impunidade pode mudar?
Da Camino – Acho
que sim. Tivemos agora um exemplo: quando que se imaginaria que um
governador de uma unidade federativa ficaria preso dois meses?
Certamente alguns agora estão pensando: “viu, largaram o (José Roberto)
Arruda”. Não. Ele foi libertado por uma decisão coerente do Superior
Tribunal de Justiça. Pode-se concordar ou discordar. Mas ele foi mantido
sob custódia durante o período em que o ministro relator entendeu que
se ele estivesse em liberdade significaria prejuízo à investigação. É
algo inimaginável na história do Brasil um governador ficar preso por
dois meses. Sou otimista quanto aos avanços. Mas precisamos estar
preparados para reagir em casos como a tentativa do deputado Paulo Maluf
de aprovar a Lei da Mordaça, que é um absurdo. Um atentado à cidadania.
JC – Qual sua opinião sobre o projeto ficha limpa?
Da
Camino – Sou completamente favorável. Mas há uma grande
dificuldade, e esse é um tema que tenho debatido muito. Quer se dar ao
princípio da presunção de inocência uma sacralidade que ele não tem.
Existe para, no direito penal, proteger a liberdade. Isso porém não quer
dizer que não se possa tirar efeito algum de acusações e de condenações
não definitivas. Não é razoável que uma pessoa seja investigada pela
polícia, indiciada, denunciada pelo MP, condena pelo juiz, com recurso
ao Tribunal, recurso especial ao Supremo, isso tudo ao longo de anos, e
que não haja efeito algum.
JC – Como se aplicaria?
Da
Camino – Na questão da reputação ilibada para membros do Tribunal,
por exemplo. Alguns fazem a intrepretação somente pelo fato de não ter
havido condenação definitiva. Se fosse assim, a Constituição diria.
Reputação ilibada é um conceito em relação à imagem da pessoa, de não
ter qualquer mancha, qualquer dúvida. O projeto exige a condenação por
um colegiado, não por um juiz de segundo grau. Acho que nem isso
precisava. Esse é um dos grandes problemas do sistema processual
brasileiro: um desprestígio absoluto do juiz de primeiro grau. Ficha
limpa significa que não paira dúvida. Acho que a presunção de inocência,
embora seja fundamental, não é absoluta. Outros princípios devem ser
cotejados, como o da proteção da sociedade, da segurança jurídica e da
moralidade administrativa, para que se decidam questões como a ficha
limpa e a reputação ilibada.
JC - O senhor está completando
dois anos no cargo. Como avalia?
Da Camino – Foi um
período difícil. O MPC foi o primeiro órgão a investigar o Detran,
depois se integrou à Polícia Federal e ao MPF. Isso só foi possível pelo
respaldo dado por meu antecessor, Cezar Miola, disponibilizando as
condições para trabalhar. Mas dificilmente um período tão tenso quanto o
de 2008 vai se repetir. As questões da Operação Rodin ainda
repercutiam. Depois houve o episódio, muito explorado na mídia, da casa
da governadora (Yeda Crusius). Ocorreu uma superexposição que eu espero
que não se repita, até porque tem um custo pessoal muito alto.
JC
– Em termos de represálias ou ameaças?
Da Camino –
Recebi ameaças enormes, mas não pressão pessoal. Ninguém veio falar
comigo para me pressionar. Mas recebi cartas anônimas com ameaças de
morte. Houve um momento extremamente tenso nas relações entre o MP e a
presidência do Tribunal com várias medidas que agrediam a autonomia do
MPC e que, felizmente, não foram respaldadas pelos conselheiros.
JC
– Com a visibilidade do MPC, aumentou a demanda?
Da Camino
– Sim, aumentou substancialmente. Diria que a visibilidade e o
trabalho feito deram conhecimento à sociedade acerca do que é o MPC.
Esperamos que isso esteja acompanhado de reconhecimento e de
legitimidade.
JC – Como avalia os desdobramentos do caso
Detran?
Da Camino – Pela quantidade de réus e pela
complexidade dos temas acho que está andando num ritmo razoável. A
Operação Rodin é um divisor de águas na política e na administração do
Rio Grande do Sul. Nunca se chegou em níveis tão altos da administração.
A integração dos órgãos de controle também nunca tinha funcionado tão
bem.
JC – Há tempo as estatais não são auditadas pela Cage,
que precisa ser reaparelhada.
Da Camino – O MPC, há
anos, em seus pareceres exarados nas contas da governadora do Estado
tem ressaltado a importância do controle interno que é o primeiro filtro
das legalidades e que pode evitar uma série de danos ao erário. Não faz
sentido não priorizar este quadro em que um acréscimo de poucos
servidores resulta em uma grande economia. O debate sobre o
fortalecimento dos órgãos de controle deveria ser feito com os
candidatos nesta eleição. Que prioridades darão aos órgãos de controle
do Poder Executivo?
JC – O senhor disse que a Operação
Rodin foi um marco. Diminuiu a corrupção ou os agentes dela estão mais
cautelosos?
Da Camino – Há algum avanço na questão da
transparência, apesar de ainda tímido. A sociedade tem exigido, e a
imprensa tem cobrado que se divulguem mais as ações governamentais. Mas
ainda há muito a avançar. Quanto mais os órgãos investigam, mais
corrupção encontram. Será que havia mais corrupção antes ou a
investigação é que era tímida?
JC – O TCE tem dado mais
transparência às suas ações?
Da Camino – Embora a
exposição seja desgastante, pelo menos, se discute o órgão. E agora o
presidente João Osório tem tomado inúmeras medidas que são elogiáveis.
JC
– Ele assumiu com a disposição de recuperar a imagem do TCE.
Da
Camino – João Osório elegeu isso como bandeira. Tem sido efetivo
nas promessas que fez e acho que é positivo no que diz respeito à
publicidade e à transparência. O site hoje disponibiliza salários, nomes
de servidores, de cargos comissionados. A auditoria nas folhas é
bastante importante. Não só importante como essencial em vista das
últimas questões que foram suscitadas, como os pagamentos indevidos na
Assembleia.
Perfil
Geraldo Costa Da Camino, 47 anos, é
natural de Porto Alegre. Formado em Direito pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (Ufrgs), em 1996. Advogou por pouco tempo,
ingressando, através de concurso público, no Instituto Nacional de
Seguridade Social (INSS), em 1997. Nos três anos e meio em que trabalhou
no instituto, Da Camino passou por Cachoeira do Sul e Rio Grande, como
procurador regional e, finalmente, Porto Alegre.
Faz mestrado em
Direito Público, com ênfase em infrações administrativas. Foi, por dois
anos, professor substituto de Direito Financeiro e Direito
Previdenciário da Ufrgs. Atualmente, leciona na Escola Superior do
Ministério Público (ESMP), no curso de pós-gradução de Gestão Pública.
Em
14 de setembro de 2000, assumiu no Tribunal de Contas do Estado (TCE)
como procurador-adjunto, sendo promovido a procurador-geral do
Ministério Público de Contas em 28 de abril de 2008, sucedendo o
conselheiro Cezar Miola.