Duas
vezes secretário estadual do Planejamento, João Carlos Brum Torres
(PMDB) avalia que o atual equilíbrio das contas do Estado é instável,
já que depende de fatores externos como crescimento da economia e, por
consequência disso, da arrecadação. Também observa que o ajuste fiscal
foi feito nos últimos quatro governos - Antonio Britto (PMDB), Olívio
Dutra (PT), Germano Rigotto (PMDB) e Yeda Crusius (PSDB) - à custa de
diminuição de investimentos e sucateamento de serviços públicos,
inclusive em áreas importantes, como segurança e educação.
Embora defenda a necessidade de manutenção do esforço para
evitar o aumento da dívida pública, Brum Torres aponta que o próximo
governante gaúcho deve trabalhar para valorizar o funcionalismo
público, recuperando a inteligência do setor, hoje quase restrita à
Secretaria da Fazenda. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o
ex-secretário projeta, ainda, uma polarização entre PMDB e PT na
disputa ao Piratini, defendendo uma agenda mínima dos dois partidos,
antes das eleições, para garantir o avanço do Estado.
Jornal do Comércio - Como o senhor avalia as contas públicas do Estado?
João Carlos Brum Torres - Um dado estrutural é a
relação do PIB (Produto Interno Bruto) com a receita própria estadual.
Em qualquer estatística comparativa entre a economia dos estados, o Rio
Grande do Sul fica na quarta posição. Mas nesta lista, nunca estamos
acima da 14ª posição, chegando até a 20ª. Isso mostra que a receita
pública própria do Rio Grande do Sul, comparada ao PIB, é muito baixa.
E a nossa estrutura governamental não é menor do que os demais estados.
JC - O gasto com pessoal é o mesmo?
Brum Torres - O Ipea fez uma pesquisa sobre gasto
de pessoal entre 1996 e 2002. O único entre os 27 estados que
apresentou uma tendência declinante de gasto com pessoal em relação à
receita, nesse período, foi o Rio Grande do Sul. Em todos os estados
esse número aumentou. Isso mostra que, independentemente dos governos,
vem sendo feito um esforço de ajuste fiscal, de controle do gasto com
pessoal e de custeio. Tem um processo saneador que é antigo; vem, pelo
menos, desde o governo do Britto. O atual governo enfatizou ainda mais
isso, conteve mais o gasto e, principalmente, teve uma recuperação de
receitas muito importante.
JC - O equilíbrio das contas se deve a esse aumento na receita?
Brum Torres - Principalmente ao crescimento de
receita extraordinário, que se deveu à recuperação do PIB gaúcho e à
expansão do mecanismo de substituição tributária, que começou na
administração Rigotto e que se deu continuidade e foi ampliado (com
Yeda). Agora tem o ponto de equilíbrio que se está alcançando, mas com
uma prestação de serviços muito precária.
JC - Isso é culpa do ajuste fiscal?
Brum Torres - Não se deve atribuir somente à Yeda.
Para o Presídio Central se tornar o pior do Brasil, é porque há muito
tempo estamos fazendo investimentos baixos nessa área, por conta do
ajuste de contas. A divisão por governos engana um pouco e o debate
eleitoral faz com que a gente não perceba tendências que são
permanentes. O setor público gaúcho vem procurando fazer economia há
vários governos - o do PT também foi austero. E não se faz isso
impunemente. A prestação de serviços está afetada por isso,
especialmente na segurança e na educação. Na infraestrutura também, há
muito tempo.
JC - E os investimentos previstos pelo governo?
Brum Torres - O investimento programado para 2009
era de R$ 1,25 bilhão e o governo não realizou isso. Mas, mesmo que
realizasse, se compararmos a São Paulo, onde (José) Serra (PSDB)
anunciou que executou na íntegra o investimento de R$ 20 bilhões... O
Rio Grande do Sul representa 10% do PIB brasileiro, São Paulo, 35%. Mas
o investimento de São Paulo é 20 vezes maior. O setor público gaúcho
está muito limitado.
JC - A governadora salienta o aumento do orçamento do Estado
de R$ 21 bilhões, em 2007, para R$ 32 bilhões em 2010, com equilíbrio
entre receita e despesa.
Brum Torres - É um crescimento expressivo, quase
50%. A única explicação para isso é que o padrão de arrecadação nesses
últimos anos se mantém. Mas o equilíbrio das contas passa por
investimentos muito baixos, prestação de serviços deteriorada, e sob
condições de PIB crescendo a 5%. É um equilíbrio que depende de
crescimento econômico forte e preservação dos custos baixos do setor
público.
JC - O senhor está dizendo que o equilíbrio depende de "circunstâncias"?
Brum Torres - Essas considerações servem para
pontuar algumas coisas. Primeiro, o esforço de ajuste fiscal tem sido
feito há vários governos. Segundo, isso está trazendo sérios prejuízos
à qualidade e à quantidade da prestação de serviços públicos no Estado.
E, terceiro, está dependendo de taxas de crescimento do PIB na ordem de
5% ao ano. Isto mostra que o equilíbrio fiscal no Rio Grande do Sul
continua problemático. É instável: depende de desempenho econômico e da
contenção de gastos em níveis que não são satisfatórios. E cobra o
preço, que é investimento baixo, servidores desmotivados e deterioração
dos serviços. Não estou dizendo isso como crítica à governadora. Isso é
uma tendência estrutural.
JC - Essas questões que o senhor levanta devem chegar ao
debate eleitoral. O senhor aposta em polarização entre PT e PMDB ou
acredita no crescimento da governadora ou de uma via alternativa?
Brum Torres - Desconfio desses índices que têm
aparecido, de menos de dois dígitos. No processo eleitoral ela (Yeda)
passa dos 10%, com certeza. Mas a tendência é o confronto PT-PMDB. Acho
que ambos podem vir a compreender que o Rio Grande do Sul tem tudo a
ganhar se houver um entendimento mínimo de composição entre os dois
partidos, em função dos grandes interesses do Estado. Há uma
necessidade de manter a sanidade fiscal, mas é preciso se dar conta de
que algumas coisas do ajuste fiscal foram longe demais.
JC - O quê, por exemplo?
Brum Torres - Neste processo, houve uma deturpação
da inteligência do setor público. Quando comecei nessas atividades de
preparar plano de governo, tinha um bloco de pessoas competentes na
área da Fazenda, nas empresas estatais havia um grupo importante de
pessoas com uma visão boa do Estado, depois o pessoal da Fundação de
Economia e Estatística (FEE). Nesse processo de ajuste, uma parte
dessas cabeças do Estado foi privatizada ou foi envelhecendo. Há um
processo de enxugamento, por força da política de conter gastos. O
quadro não se renova, não há melhora nos salários e isso desestimula.
Então, a inteligência do Estado hoje está reduzida a um pequeno grupo -
não tão pequeno - de quadros técnicos de origem fazendária.
JC - A inteligência ficou restrita à Secretaria da Fazenda?
Brum Torres - Essa é a razão pela qual em todas as
secretarias no Estado do Rio Grande do Sul as posições mais importantes
são de quadros da Fazenda. Isso também cria uma distorção na ótica do
governo. Então, tem uma recuperação da inteligência do setor público a
ser feita no Rio Grande do Sul. Serviços em relação à área urbana, por
exemplo. A Metroplan é uma instituição absolutamente sucateada, quase
inexistente. Isso não é uma responsabilidade de Yeda. O governo do
Estado e os comandantes deste processo de ajuste - eu próprio - somos
responsáveis por isso.
JC - Como manter o ajuste fiscal e recuperar a qualidade dos serviços públicos?
Brum Torres - Quando há muitos anos de ajuste
fiscal, a tendência é considerar que os servidores são a causa do
problema. Deve haver uma valorização, uma recuperação da imagem e da
importância do servidor público no Rio Grande do Sul, que é difícil,
porque envolve também negociações salariais. É um ponto de equilíbrio
muito difícil de ser alcançado, mas se não tentarmos resolver isso,
deteriora-se cada vez mais o serviço, estamos chegando numa espécie de
ponto-limite. O governo está muito sucateado.
JC - E os projetos do governo?
Brum Torres - A ideia da escola de governo era
muito boa, discutir a reestruturação dos planos de carreira é uma boa
ideia - a governadora nesse ponto não erra. Não estou dizendo que é
fácil fazer ou que um outro governo vai fazer, mas há um desafio de
gestão, de conseguir essa reestruturação da máquina pública sem
conflagrá-la. Esse governo não está conseguindo. Britto também não
conseguiu. No governo Rigotto, fomos muito mais cautelosos, menos
ousados em propor mudanças na estruturação dos serviços.
JC - O ajuste fiscal afeta os outros Poderes?
Brum Torres - Tem se centrado basicamente nas
contas do Poder Executivo. A prestação dos serviços judiciários não só
não foi afetada como foi ampliada. O esforço de ajuste fiscal não foi
distribuído de uma maneira justa. Então, temos condições de trabalho no
Ministéiro Público e Judiciário muito boas - mesmo as da Assembleia são
melhores do que as do Executivo. E a razão é que houve resistência dos
demais Poderes, que afirmaram a tese da autonomia, e os gestores
trabalharam em cima do Poder Executivo. Isso faz com que haja um perfil
perverso de distribuição dos ônus do ajuste fiscal, em que se sucateia
os serviços do Executivo.
JC - Que medidas podem ser tomadas para que o equilíbrio das contas no Estado não afete tanto os serviços e seja mais estável?
Brum Torres - Tem uma coisa estrutural e que é
difícil de mexer: o equilíbrio federativo no Brasil não é bom, temos
uma tendência de grande centralização de recursos na União. O Rio
Grande do Sul está sendo particularmente afetado por isso. O Estado
sofre enormemente por ser exportador. E temos uma grande produção
pecuária que não paga ICMS. Essa é a razão pela qual a nossa relação
PIB-receita é muito baixa, porque tem muita isenção estrutural:
exportados e produtos primários. Isso cria um desequilíbrio estrutural
de contas. E implicaria uma política federativa mais sensível a essa
particularidade do Rio Grande do Sul, no mínimo com a questão de uma
compensação pela perda da receita de exportação mais efetiva.
JC - Mas isso é falado há tempos, sem resultados.
Brum Torres - Seria muito importante introduzir
essa discussão com as autoridades federais. Isso vale para qualquer um
dos atuais candidatos (a governador), é uma questão que deveria ser
resolvida. Não é porque o governo federal tem ignorado esse tipo de
questionamento e tem entendido isso simplesmente como uma queixa.
JC - Como alterar esse quadro?
Brum Torres - Deve haver uma ação coesa. Não temos
sido capazes de fazer com que o Rio Grande do Sul seja uma voz mais
ouvida no cenário nacional. Mas olha o segundo mandato do governo Lula:
o Rio Grande do Sul tem uma participação muito importante com ministros
(Dilma Rousseff, Tarso Genro, Nelson Jobim, Guilherme Cassel). O Estado
continua a gerar lideranças, mas a conexão dessas lideranças com o
Estado é muito mais tênue do que foi no passado. Reconheço que mudar
regras na órbita federativa é muito difícil, tanto que a reforma
tributária não sai. Mas é preciso insistir com o governo federal, ter
uma representação congressual mais ativa.
JC - De que forma?
Brum Torres - A iniciativa do deputado Ibsen
Pinheiro (PMDB) de propor uma distribuição igualitária dos recursos do
pré-sal é uma questão essencial. O deputado Beto Albuquerque (PSB) foi
o primeiro a chamar a atenção para isso e o projeto do Ibsen deu a
primeira resposta possível para o encaminhamento dessa questão.
Lamentavelmente não se viu uma movimentação massiva do Estado. E a
unidade do Rio Grande do Sul, não só no sentido de pedir apoio de
entidades, mas uma ação política concentrada e interpartidária, é
importante. Esse clima de polarização não nos ajuda. É preciso buscar
posições mais unificadas.
JC - É possível isso em ano eleitoral?
Brum Torres - O confronto principal provavelmente
vai ser entre o candidato do PMDB (José Fogaça) e o candidato do PT
(Tarso). Ambos devem estar conscientes de que o entendimento entre
esses dois partidos é uma condição para a melhora da posição do Rio
Grande do Sul no contexto nacional. Deveria haver um pacto de, pelo
menos, uma oposição construtiva, por ambas as partes.
JC - O perfil dos candidatos pode facilitar esse entendimento entre PT e PMDB?
Brum Torres - Pode e eles são conscientes disso.
Falei com o ministro Tarso e ele afirmou que não pretende fazer uma
campanha tão polarizada como fez em anos anteriores. No PMDB, isso é
uma convicção, aliás, o nosso estilo sempre foi esse. A situação no
atual governo é daquilo que não se deve fazer: uma atitude arrogante em
todos os assuntos, com a pretensão de ter descoberto a fórmula para
todos os problemas do Estado. Isso fez com que, de saída, o governo já
fosse recebido com uma certa resistência. A governadora também tem um
estilo muito autossuficiente. Fogaça e Tarso deveriam incorporar aos
seus programas de governo a ideia de que o Rio Grande do Sul precisa de
um entendimento básico entre suas forças políticas principais. A
reforma do setor público sem entendimento dos dois partidos (PT e PMDB)
não é viável.
JC - Nessa tese da busca de o Estado ser ouvido em Brasília,
o PMDB gaúcho apoia Dilma ou prevalece a ala do partido mais simpática
a Serra?
Brum Torres - Dilma tem mais condições de realmente
enxergar o Rio Grande do Sul de uma maneira mais adequada do que o
Serra, sem dúvida. Agora, decisões de apoiar um ou outro envolvem
questões partidárias.