O complô das elites
Luis Fernando Veríssimo
14/12/2006
É bobagem falar em complô das elites. "Complô" dá uma idéia de coisa orquestrada, limitada no tempo e com fim específico. O que existe é uma combinação tácita que começou na primeira vez em que uma elite viu seu direito divino de governar questionado. Uma história antiga, que vem das primeiras hordas proto-humanas, antecede as revoluções republicanas e se repete sempre que há um desafio à idéia de que alguns mandam porque Deus quer. Em toda idéia de elite, de superioridade auto-evidente e de privilégio merecido, há a presunção implícita de uma escolha divina. Todas as aristocracias reproduzem, às vezes como paródia, a certeza do mandato exclusivo de Deus que legitima as monarquias absolutas. E o "complô" histórico de elites ameaçadas consiste sempre em equiparar o desafio ao seu poder a uma herética ameaça à ordem do mundo como deve ser, como Deus quer. O ocaso do mundo feudal coincidiu com um fanatismo religioso, persecutório, sem precedentes na História. A Inquisição, longe de ser uma afirmação do poder da Igreja, foi uma reação ao seu declínio. Antes da revolução, a nobreza francesa já reagia ao antiabsolutismo dos iluministas demonizando a "classe perigosa" que viria atrás dos seus pescoços se a pregação libertária vencesse. Em todos os casos, a perda do privilégio exclusivo de mandar era visto como uma profanação.
É compreensível que no último país do mundo a abolir a escravatura o longo hábito de mandar por subentendida designação divina acabe lentamente, e a "classe perigosa" tenha dificuldade em ser aceita no salão. Mas, tanto no Brasil quanto em outros países da América Latina, a divisão entre elite mandante e maioria excluída é apenas uma decorrência histórica nunca devidamente desafiada e, em vez de complôs para perpetuá-la, nossas aristocracias só são culpadas de desatenção - de confundirem uma tradição de injustiças com o que deve ser, seus privilégios intocáveis com ordem e mudanças com heresia. "Hábito contrariado" é um bom sinônimo para complô, e explica o ódio dirigido a qualquer perspectiva de outra coisa. O hábito brasileiro contrariado é de uma história feita até aqui toda de cima para baixo, com arranjos e rearranjos de oligarquias substituindo a participação popular. A continuada resistência à mudança, o apego a uma tradição cujo resultado evidente é a brutalização crescente da divisão social, sugere outro sinônimo, menos simpático, para complô da elites. Pacto suicida.
Fonte: ZH
Dtat: 14-12-06
Comentário do Afocefe:
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