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Uma decisão memorável do Supremo

PAULO BROSSARD/ Jurista, ministro aposentado do STF

13/11/2006
Faz um mês, se tanto, a imprensa noticiou fato inacreditável: nos 18 anos seguintes à Constituição de 88, teriam sido editadas mais de 3 milhões de normas de caráter tributário, matéria só disciplinável mediante lei. Nada mais ilustrativo do vigente grau de bastardia legislativa, pois entra pelos olhos que nesse período não foi elaborada a décima parte de supostas leis; mesmo assim, esse número assombroso, ainda que reduzido à metade ou à décima parte, é insuscetível de ser assimilado pelo comum dos mortais. Em outras palavras, o dado revelado retrata em verdade a real insegurança que envolve o cidadão, que nem carregando um computador às costas poderia acompanhar as malhas que teria de conhecer e respeitar. Além disso, dessa situação resulta uma realidade, a lassidão existente no seio da administração, para não dizer a leniência instalada no imo social, que tolera esse formidável desvio e com ele convive. Com tamanha proliferação de normas, a insegurança de tudo e de todos é a resultante óbvia. Aliás, não é por acaso que a Constituição assegura a todos, "independente do pagamento de taxas, a) o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimentos de situações de interesse pessoal". Pois bem, a administração conseguiu o milagre de, ao mesmo tempo, dar e não dar a certificação requerida. O direito ao esclarecimento de situação pessoal é direito individual assegurado a todos, reza a Constituição, mas uma portaria emenda a cláusula constitucional e mascara o direito, dizendo que o fato de inexistir um débito conhecido não quer dizer que ele não exista e possa vir a ser descoberto... A Constituição diz uma coisa, a portaria diz outra! O jurisconsulto Pontes de Miranda lembrou mais de uma vez alvará de 1604 no qual Felipe prescrevia que "qualquer oficial, que cumprir, ou fizer obra pelas tais Portarias, ou Cartas, será privado para sempre de ofício, que tiver". Contudo, as portarias ainda prevalecem sobre cláusula constitucional expressa e categórica.
Mas por que estou a tirar o pó dessas velharias? Porque a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre resolveu bater às portas do Supremo Tribunal Federal e dele recebeu uma decisão magistral da lavra do ministro Celso de Mello, que merece ser divulgada.
Como se sabe, a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre não é uma entidade desconhecida. Tem 200 anos de serviços à população da Capital e do Estado, assim como de outros Estados. Enfrentou fases difíceis e as venceu. Nunca freqüentou a lista de sonegadores. Faz habitualmente o que o poder público deveria fazer e nem sempre o faz. Considerando sua natureza e finalidade, a Constituição lhe concede imunidade tributária e não apenas isenção. Necessitou, como as entidades em geral, da certidão de regularidade fiscal. Embora sua situação fosse regular, não a obteve, pois, nos termos da famosa portaria, ressalva-se a possibilidade de vir a ser cobrado algum débito ignorado. Sem esse documento, estaria impedida de receber quaisquer recursos públicos, de participar de projetos relativos à saúde inerentes à sua condição de hospital-escola vinculado à Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, não poderia receber valores de órgãos públicos com quem mantivesse convênios médico-hospitalares, não poderia importar equipamentos, medicamentos e insumos mesmo para atender pacientes do SUS, não poderia liberar na alfândega bens importados. Enfim, não poderia funcionar. Fico por aqui. Desnecessário se torna relatar os meandros que teve de enfrentar até chegar ao STF, onde o ministro Celso de Mello deferiu o pedido da Irmandade no sentido de reconhecer sua imunidade e determinou que a Receita expedisse a certidão de regularidade fiscal. Mais ainda. A 2ª turma do Supremo referendou, integralmente, por seus próprios fundamentos, a decisão do ministro relator. Não preciso dizer mais. A Receita preferira a portaria dela mesma. O ministro ficou com a Constituição e determinou que aquela respeitasse a Constituição. Como de costume, a decisão foi modelar, em sua fundamentação e em sua conclusão. Do mais puro quilate jurídico. Da mais lídima justiça. Estas as razões por que entendi de difundir a notícia da memorável decisão do STF.


Comentário do Afocefe:



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