Sobre o artigo A Crise do espírito de serviço público
Rogério Viola Coelho
18/08/2005
O artigo analisado foi escrito por ALAN SUPIOT
ALAN SUPIOT ¾ juslaborista francês com inúmeras obras publicadas — produziu a intervenção contida no texto anexo em um colóquio sobre o serviço público de seu país, realizada na segunda metade da década de oitenta. Trata-se de uma profunda reflexão sobre a relação de trabalho com o Estado, em que ele constrói de forma original o conteúdo de duas categorias inafastáveis para uma abordagem sociológica do servidor público no Estado moderno: o espírito de serviço público e a moral profissional.
A elaboração teórica referida tem o objetivo imediato de analisar o significado de um período conturbado por uma sucessão de greves verificadas no setor público de seu país nos anos de 1985 a 1987, que ele descreve como uma série de situações conflitivas encadeadas, em que se teria produzido a desestabilização do espírito do serviço público e o abalo da moral profissional do servidor público. Esta crise ¾ convém lembrar ¾ se verifica no Estado europeu reconhecido como referência positiva para os demais países, face o nível de eficiência e a tradição de qualidade dos serviços públicos oferecidos à cidadania.
A elaboração do conceito de espírito de serviço público parte da comparação da relação jurídica estabelecida pelo trabalhador do Estado com a entidade pública a que serve — que é de natureza estatutária, vale dizer, regida pela lei ¾ com aquela que estabelece com o tomador de seu serviço, o trabalhador do setor privado, a qual é regulada pelo mercado e regida pelo contrato. No setor privado, o trabalho é vendido como mercadoria, estabelecendo-se uma relação de troca com duração aleatória em que o salário aparece como medida de valor do trabalho no mercado, e se conforma uma relação de subordinação direta e exclusiva ao tomador do serviço. “O assalariado”, diz SUPIOT, “abdica de sua vontade própria para se tornar instrumento da vontade de seu empregador e não se espera dele outra consciência profissional além da consciência de tal obediência”. Na relação de trabalho com o Estado — diversamente — “o funcionário não se subordina a uma determinada pessoa e, sim, a uma organização e aos valores por ela encarnados”. O seu chefe está, como ele, a serviço do público, de tal forma que “os valores comuns a ambos transcendem a relação do poder entre eles”. Da dupla relação, com a hierarquia e com o usuário, resulta a “idéia de dignidade profissional, que exclui o servilismo tanto quanto proíbe a arbitrariedade”. Constitui-se assim uma autonomia de julgamento que configura uma determinada moral profissional e distancia o servidor público do trabalhador do setor privado. Autonomia que encontra sua expressão jurídica e sua garantia na estabilidade e sua expressão sociológica na vocação dos sindicatos de servidores públicos para expressar o interesse público, tanto quanto os interesses categoriais.
Na relação com o dinheiro também se estremam os dois tipos de relação. Enquanto o salário, no setor privado, exprime o valor de mercado e reflete uma operação de simples troca de valores, a remuneração do servidor é uma contrapartida do seu compromisso com o serviço prestado ao público e deve corresponder à quantidade de dinheiro necessária e suficiente para assegurar a sua dignidade e a sua integridade.
Na relação com o tempo mais uma vez se distanciam as duas relações. Enquanto a duração do contrato no setor privado é aleatória, a relação de trabalho público é marcada pela continuidade e pelo despreendimento das possibilidades de ganhos maiores, habitualmente oferecidos pelo mercado.
Estas características conformadoras do espírito de serviço público — dignidade na relação com o poder, serenidade na relação com o dinheiro e continuidade na relação com o tempo — é que, no entendimento de SUPIOT, proporcionaram na França o surgimento de uma identidade e uma moral profissional capazes de garantir a integridade e a eficiência dos serviços públicos, que agora estariam abalados justamente por terem sido minados os elementos conformadores da subjetividade dos trabalhadores do setor público.
É necessário agregar à reflexão de SUPIOT, a partir de nossa ótica, que um dos elementos estruturantes fundamentais da subjetividade do servidor e da qualificação dos serviços oferecidos à comunidade é a concepção de função pública instituída pelos agentes políticos que se sucedem na direção o Estado. Na França ela é concebida como uma profissão diferenciada, que requer uma formação profissional não propiciada pelo ensino formal, o que exige a manutenção de um sistema permanente de qualificação com abrangência sobre os diversos corpos de funcionários e contempla as suas especificidades. Esta concepção está no cerne do regime de corpo, adotado pelo estado francês e seguido por outros estados europeus. Este regime difere radicalmente do regime de cargo, vigente em nosso País, com exceção de algumas poucas categorias de servidores, entre estas a dos docentes universitários, a dos diplomatas e a dos militares. A pré-compreensão que sustenta o regime de cargo é a concepção do Estado como uma grande máquina, cujos organismos são formados por peças — os servidores — que realizam movimentos específicos — as atribuições do cargo — conformadores de um posto de trabalho, a position dos americanos.
Como as peças de uma máquina, os substitutos dos servidores afastados são, nesta concepção, encontrados prontos no mercado. A matriz teórica do regime de cargo é o taylorismo, cujo modelo é o das grandes fábricas da segunda revolução industrial. Seguindo esta concepção, o Estado não necessita investir na qualificação profissional dos seus servidores que, tal como os operários fabris gerados pela segunda revolução industrial, estão dispensados de pensar sobre o resultado de sua atividade produtiva e sobre a própria forma de execução de seus atos de trabalho, planejados minuciosamente pelas gerências. Da mesma forma que o operário conformado pelo taylorismo-fordismo, o servidor público no regime de cargo está condenado a não pensar o seu trabalho, que é concebido e planejado tecnicamente nos escalões superiores, e a permanecer ao longo de sua vida útil no mesmo posto de trabalho, em regra sem perspectiva de efetivo progresso profissional e social. Daí resulta que no regime de cargo o servidor público é notoriamente submetido a relações de poder: o seu corpo e sua mente são submetidos integralmente a inteligência “externa”. Segundo Foucault, as relações de poder são relações de utilidade-docilidade, que têm o efeito de produzir individualidades.
As carreiras concretamente existentes em nosso País, sob a égide do regime de cargo, não passam de escalas salariais, que, em face do processo inflacionário, produzem o “efeito pau de sebo”: os avanços que o servidor conquista na escala de salários nominais são esvaziados pela inflação, de tal forma que a sua remuneração real tende a descer. Daí resulta que a relação do trabalhador do Estado com o dinheiro não pode ser de serenidade.
As condições concretas impostas aqui pelo Estado aos seus servidores — marcadamente nos últimos anos, de confinamento alienante nos respectivos postos de trabalho, sem direito a qualificação profissional, de crescente sucateamento dos órgãos e entidades a que servem e, ainda, a submissão a políticas remuneratórias geradoras da degradação progressiva de suas condições de vida — não poderiam propiciar a formação do espírito de serviço público que foi descrito por SUPIOT. Ao contrário, esta concepção autoritária deveria gerar uma subjetividade marcada por um sentimento de desvalia em lugar da dignidade profissional; de resignação e acomodação em lugar do orgulho profissional, que é gerador da iniciativa e da busca de eficiência dos serviços; de fragmentação em lugar do sentimento de identidade que enseja uma moral profissional elevada.
Se, de um lado, a formação do espírito de serviço público no Brasil encontra óbice nas determinantes autoritárias examinadas, marcadamente nas últimas décadas, por outra parte ela é obstaculizada desde os primórdios do serviço público pela tradição clientelista, que é uma característica marcante dos agentes políticos no estado patrimonialista. O clientelismo remanesce de uma forma matizada e sutil através da distribuição abundante de FG’s e CC’s a inúmeros servidores que exercem funções comuns, sempre ao arbítrio dos agentes políticos e das altas chefias. Trata-se de uma persistente manifestação de autoritarismo, uma vez que submete a vida profissional do servidor a vontade dos dirigentes, derrogando o sistema de avaliação e reconhecimento de mérito funcional formalmente instituído, que é inerente ao regime estatutário.
A análise que SUPIOT oferece dos movimentos grevistas por ele descritos como expressão da desestabilização do espírito de serviço público na França nos oferece elementos instigantes para pensar a nossa realidade. Os sucessivos movimentos grevistas ocorridos no setor público em nosso País, além do significado explícito de resistência explícito de resistência corporativa às políticas reinteradas de aniquilamento das condições de vida dos trabalhadores, carregam também um significado implícito de construção de uma identidade enquanto categoria profissional diferenciada, portadora de uma dignidade efetiva, contra a vontade do Estado autoritário.
O fenômeno estudado — que o professor da Universidade de Nantes denomina de desestabilização do espírito de serviço público — teria origem no contraste do setor público com o setor privado, que é associado às imagens de eficiência e opulência e que, aos olhos da sociedade, passa a ser confrontado com o setor público para depreciação dos serviços do Estado e da figura do servidor. Essa depreciação do serviço público aos olhos da sociedade é o que SUPIOT chama de “efeito rejeição”, e explica pelas limitações que lhe são próprias, a começar pela obrigação de assegurar o mesmo atendimento a todos os usuários e pelas crescentes restrições orçamentárias, agravadas pela rigidez do controle financeiro e pelo relaxamento ou inexistência dos controles de eficácia. Muitas das greves que se encadearam no período tinham o sentido de uma reação às limitações incidentes sobre os serviços públicos prestados pela categoria profissional, tendo como referencial as condições em que se desenvolvia a atividade privada, ora porque essas condições eram mais favoráveis e os grevistas postulavam a sua “importação”, ora porque os agentes políticos queriam impor aos grevistas um alinhamento dos critérios e condições de trabalho vigentes no setor privado. Em qualquer hipótese, o resultado tendia a ser a “desestabilização” da noção de valor profissional própria dos servidores. A inevitável comparação dos salários praticados num e noutro setor para a mesma qualificação profissional, quando as diferenças existentes ultrapassam certos limites, tendia “a solapar os valores profissionais constitutivos do espírito de serviço público”.
O efeito de mimetismo, também identificado por SUPIOT, consiste na importação (imitação) de certos aspectos de organização do trabalho do setor privado. O melhor exemplo do efeito de mimetismo é o que ocorreu com a tentativa de introdução no setor público do sistema de salários por mérito, típico do setor privado. Segundo SUPIOT, este sistema solapa as três dimensões do espírito de serviço público: primeiro “solapa a dignidade nas relações com o poder, pois coloca os funcionários em uma relação de subordinação individual relativamente a seus superiores hierárquicos, o que faz temer o servilismo de uns e a arbitrariedade de outros”. Solapa a serenidade nas relações com o dinheiro, rompendo a idéia da correspondência de um salário certo para uma função determinada, bem como a relação de continuidade na relação com o tempo, introduzindo na relação de trabalho a descontinuidade na renda.
Em nosso País, o efeito nocivo da importação do “salário por mérito”, descrito por SUPIOT, encontra similaridade na criação abundante de cargos e funções gratificadas para serem conferidas a servidores que continuam a exercer as funções inerentes aos seus cargos efetivos, desprovidos de qualquer fidúcia especial, distribuição que fica ao arbítrio das chefias superiores, pervertendo a relação hierárquica que seria, em condições normais, marcada pela dignidade e pela autonomia constitutivas da moral profissional do servidor público.
Segundo o publicista francês, é forçoso reconhecer que as greves que conformam o objeto de sua reflexão atestam uma vitalidade profissional persistente, uma vez que “nada seria mais desastroso para o futuro dos serviços públicos que ver agentes interiorizarem a idéia de sua desvalorização e afundarem-se na apatia e na perda de toda e qualquer consciência profissional. Essas greves expressam, no seu entendimento, “as vezes de forma veemente, a identidade profissional dos grevistas”.
Verificando que abriram ou participaram do encadeamento de greves examinadas algumas categorias dotadas de grande competência profissional, cujo trabalho implica reais responsabilidades individuais, percebe aí uma busca do reforço da identidade profissional, que aponta para a reconstituição do espírito de serviço público, desestabilizado por condições de trabalho adversas, mas pode apontar também, em alguns casos, para a adesão aos valores da esfera de mercado.
A primeira tendência manifestada foi a de abandono do espírito de serviço público pelos valores de mercado, assumindo os grevistas o que se denomina “moral do vencedor”, própria do mundo privado. A reafirmação do espírito de serviço público se revelou nos conflitos gradativamente, seja através da afirmação da moral profissional, como foi o caso de enfermeiras que mantiveram assistência aos doentes, seja reivindicando o reconhecimento de usa dignidade profissional pelos escalões superiores. Afastando-se dos valores do setor privado a maioria dos movimentos enfocados, acabou encontrando referenciais que reforçaram o espírito de serviço público, marcadamente o critério do nível de formação e o da antiguidade, que acentuam valores inerentes à pessoa do servidor.
Por último registra SUPIOT que a reação dos usuários e do público às greves dependeu de carregarem elas, em maior ou em menor grau, uma forte afirmação da moral profissional.
Estas observações valeriam também para as greves dos servidores públicos ocorridas nos últimos anos no Brasil, particularmente dos docentes e técnico administrativos, que vêm pautando entre suas reivindicações a defesa da universidade pública através da denúncia das políticas governamentais voltadas para o seu sucateamento. O aspecto concernente à moral profissional, ressaltado por SUPIOT, tem sido igualmente valorizado pelos trabalhadores públicos no Brasil, seja através da manutenção dos serviços essenciais, seja pela recuperação das aulas do período de greve.
As greves dos servidores públicos no Brasil carregam ainda o significado implícito de construção de sua cidadania, reiteradamente coibida pelos poderes do Estado, historicamente articulados para negar ao servidor o direito de expressar-se como trabalhador para influir na determinação das suas condições de trabalho e nas suas condições de vida, negando-lhes sistematicamente uma esfera de vontade individual, e a expressão de sua autonomia coletiva, como categoria profissional.
Cumpre lembrar, por último, que a conquista do direito de greve pelos servidores públicos no Brasil, já na vigência da Constituição do Regime Autoritário, que a proibia expressamente, se deu em condições extremamente adversas de vez que, além do desafio à ordem legal, se deu em uma época em que a grande maioria da categoria não tinha qualquer garantia no emprego. Nestas condições a conquista do direito de greve através daqueles movimentos teve um duplo significado. Ao mesmo tempo em que os servidores afirmavam a sua cidadania contra o Estado autoritário, ao fragilizá-lo abriam espaços para o avanço da democracia.
Prevalecendo, na transição democrática, a hegemonia dos setores conservadores da sociedade, após a inscrição do direito de greve na Constituição de 1988, verificou-se uma articulação concubinária dos três poderes do Estado para impedir o seu exercício, restabelecendo-se o status quo ante. O Legislativo contribui com sua omissão, não editando a lei complementar que a Constituição prevê para regulamentar o exercício do direito. O Poder Judiciário tratou de produzir uma leitura cínica da norma constitucional que consagrou o direito de greve, para convertê-la em norma proibitiva do seu exercício. E agora o Chefe do executivo, usurpando poderes do Congresso, baixa um decreto pretextando regulamentar provisoriamente o direito, para coibir o seu exercício.
Nestas condições, os movimentos grevistas têm o sentido de defesa da cidadania conquistada, e de defesa da Constituição, contra o autoritarismo remanescente, que nos três poderes, que trata de negar o seu espírito e a sua eficácia normativa material. Ao mesmo tempo correspondem a uma defesa do serviço público contra o avanço do projeto neoliberal que busca sucateá-lo. Assumem desta forma uma dimensão política de defesa do Estado Democrático de Direito.
Estão postos, assim, no instigante trabalho do professor francês, elementos preciosos para a análise indispensável das experiências vividas pelos servidores públicos brasileiro.
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