Triste Brasil
Marco Villa
15/06/2005
O governo Lula acabou. E ao som de "Cuore Ingrato". Contudo, a Presidência da República continuará ocupada interinamente por Luiz Inácio Lula da Silva. Nos próximos 18 meses, vamos assistir ao triste espetáculo do imobilismo administrativo.
--------------------------------------------------------------------------------
O término melancólico do governo Lula é ruim para a democracia. Dá a idéia de que não há possibilidade de mudança
--------------------------------------------------------------------------------
Devemos ter até dezembro de 2006 várias reformas ministeriais, ora para ampliar a base política no Congresso Nacional, mantendo sob controle principalmente as CPIs; ora para formar a chapa para a eleição presidencial, agregando mais partidos à aliança vitoriosa de 2002; ora, finalmente, para liberar ministros que serão candidatos ao Legislativo e ao Executivo.
Se temos 3 dezenas de ministros, continuaremos sem saber quem são os titulares de vários ministérios, mesmo que o governo "corte na própria carne" e elimine os mais exóticos, como o da Pesca.
Como a campanha eleitoral já começou -e não apenas por iniciativa da oposição-, o noticiário político vai ser tomado pelas articulações das alianças para 2006. Entrevistas, fofocas, notícias plantadas na imprensa vão ocupar a nossa atenção.
Vamos saber de mais uma do Severino Cavalcanti, o presidente Lula vai contar diversos casos da sua história pessoal (e deve, como de costume, se emocionar), o ministro Aldo Rebelo vai se esforçar e buscar algum exemplo histórico para ilustrar a sua avaliação da conjuntura política, ficaremos indignados com a divulgação de mais alguns casos de corrupção, o Ministério Público vai apresentar várias denúncias contra os desvios dos recursos públicos e acusados, no passado, de graves crimes de corrupção, levantarão suas vozes em defesa da pureza dos ideais republicanos, representando, 2.000 anos depois, de forma pífia, o papel de Catão, o censor. É a rotina da vida política no Brasil.
Na imprensa, o debate deve ficar ocupado pelos defensores da reforma política. Ninguém sabe bem o que é, mas muitos são plenamente favoráveis à sua adoção. Dirão que a corrupção é fruto do sistema e que temos de colocar novamente em tela a agenda política. Muitos concordarão entusiasticamente.
No Senado, a tribuna será ocupada por um parlamentar que, em meio aos habituais tropeços gramaticais, citará Rui Barbosa, falará das belezas da província e clamará pela moralização, mesmo que tenha abandonado o último cargo público por temor da cassação. É o faz-de-conta da política brasileira.
O presidente da República deixará as peladas futebolísticas, os churrascos e as festas juninas na granja do Torto, mas manterá as viagens internacionais. Afinal, o Brasil tem um importante papel internacional a resguardar, mesmo mantendo indicadores sociais piores que os de muitos países africanos -e isso sem ter passado pelo genocídio representado pelo tráfico de escravos.
Os intelectuais continuarão onde sempre estiveram. Diferentemente do contestador espanhol, no Brasil, onde há governo, o intelectual está a favor. Agora são petistas, mas já foram peessedebistas, peemedebistas. Acharam Fernando Collor reformador e viram uma aura renovadora no regime militar. O silêncio crítico dos intelectuais é sombrio. Diferentemente de gerações anteriores, não querem colocar em risco suas carreiras. Perderam há muito tempo a capacidade de indignação.
Os graves problemas nacionais, ah, esses são olimpicamente ignorados no cotidiano da política brasileira. Deles ninguém fala, discute ou apresenta propostas. Não merecem espaço na tão falada agenda política. Estão armazenados para serem usados na próxima campanha eleitoral.
Os marqueteiros mantêm atualizado um estoque de filmes retratando as mazelas do Brasil. Mas não só: as soluções serão também apresentadas em cores, com efeitos computadorizados, e o candidato, devidamente ensaiado e maquiado, falará com autoridade sobre o problema, mostrará indignação, com o rosto contrito, e ao final apresentará, com um leve sorriso, a solução. Eleito, desprezará o programa eleitoral: afinal, para que utopia, como já disse o comissário, digo, o ministro José Dirceu.
Como uma história já prevista, a crise será imputada ao sistema político. E todos concordarão, defenderão a mudança. Repetirão que o problema é que, para governar, é preciso se aliar às "más companhias", como disse o ministro Olívio Dutra, que reapareceu depois de meses de ausência.
É o presidencialismo de coalizão, como definem os cientistas políticos, que engessa a mudança. Cabe perguntar: os presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek não enfrentaram também as oligarquias? Não tiveram também de conviver com as "más companhias"? E por isso não modernizaram e transformaram o Brasil?
O término melancólico do governo Lula é ruim para a democracia. Dá a idéia de que não há possibilidade de mudança no interior do Estado. Que as oligarquias e os interesses corporativos são tão poderosos que somente um regime discricionário teria autoridade para enfrentá-los. Consolida o senso comum de que todos os políticos são iguais, de que a corrupção é inerente à política. E, aí, estaremos abrindo mais uma vez o caminho para uma saída autoritária ou para algum aventureiro político.
--------------------------------------------------------------------------------
Marco Villa, 49, é professor de História da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor de, entre outras obras, "Jango, um perfil (1945-1964)" (editora Globo).
@ - marcovilla@uol.com.br
Fonte: Folha de São Paulo
Data: 15/05/05
|
|