Quem defenderá os trabalhadores?
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
20/04/2005
Ao situar-se no mundo, o Brasil está imprensado entre países que gozam de grande acumulação de capital e de tecnologia e países que contam com reservas quase ilimitadas de trabalho barato e disciplinado. No primeiro caso, estão as economias ricas do Atlântico norte; no segundo, a China e a Índia. Nossos governantes nos jogaram na tentativa, insensata e ruinosa para país como o nosso, de prosperar à base de trabalho mal pago e mal treinado.
A característica decisiva do rumo que o Brasil segue desde a época da ditadura militar, aprofundada por todos os governos civis subseqüentes, é o aviltamento do trabalho e a queda da participação dos salários na renda nacional. Mesmo quando a produtividade aumentou, o salário regrediu. Não deu certo: a um século de mistura de crescimento com desigualdade, seguiram-se 30 anos de mistura de desigualdade com estagnação. Foi a desvalorização do salário, mais do que a valorização do câmbio ou o agravamento dos impostos, o que serviu de âncora à estabilização da moeda. Tragicamente, esse neo-escravagismo apresenta-se travestido de racionalidade econômica.
O diálogo com grandes empresários e com lideranças profissionais me faz crer que há base para reorientação, fundada em convergência nacional. Falta definir o conteúdo programático dessa reorientação. E ganhar o poder em seu nome.
Quatro conjuntos de iniciativas, se deflagrados em conjunto, permitiriam iniciar ciclo de desenvolvimento calcado na valorização e na qualificação do trabalho. Sem pagar o preço, inaceitável, da volta da inflação.
O primeiro conjunto de iniciativas tem a ver com a melhora da qualidade do ensino público. O segundo, com o uso de empresas públicas e de bancos públicos para democratizar o acesso ao crédito, à tecnologia e ao conhecimento técnico e para difundir as práticas mais bem-sucedidas. O terceiro, com o financiamento dos direitos trabalhistas por meio dos impostos gerais, suprimidos todos os encargos sobre a folha de salários. O quarto, com medidas destinadas a aumentar a participação dos salários na renda nacional, sem efeito inflacionário, e da maneira mais adequada a cada nível da hierarquia salarial. Hierarquia que no Brasil, como em quase todo o mundo, se vai tornando cada vez mais íngreme.
Na base da hierarquia salarial, o caminho é incentivar o emprego e a qualificação dos trabalhadores mais pobres. No topo da hierarquia salarial, é assegurar, para grupos cada vez mais amplos, a participação dos empregados nos lucros dos empregadores. E, no meio da hierarquia salarial, é fortalecer o direito de trabalhadores organizados de representar os interesses dos não-organizados em seus setores da economia. Essa regra -praticada em muitos países europeus- será tanto mais necessária se o governo Lula conseguir, como quer, impor uma reforma sindical que agravará os desníveis de organização e de representação dentro do operariado.
A prioridade da campanha de 2006 é defender os interesses do trabalho. E demonstrar que da primazia desses interesses depende hoje o desenvolvimento nacional. Em outubro do ano vindouro, a nação julgará quem são os amigos dos trabalhadores.
Fonte: Folha de São Paulo
Data: 26/04/05
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